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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Move-me


I

Move-me a areia feita de pedras, sol e sal.
Movediça miragem de um deserto solitário,
onde se enterram segredos de conchas e estrelas.
Agonia-me a vida um mar profundo em que se afogam lembranças,
rastro inatingível de tristeza.

Minha vida é esse barraco abandonado na paisagem da minha janela,
de vidros estilhaçados e grades que me protegem do vazio e memórias alheias,
do nada que emerge da noite em lampejos de sombras e miados em cio,
de névoa envolvendo a cidade, alongando os dias,
- como a cortina que acoberta o passo de um bêbado trôpego no lixo da rua
a confundir a cor das folhas e o sentido das coisas.

II

As luzes frias postadas na rua me dão a falsa sensação de segurança.
O cheiro da terra pingada de chuva se mistura à fumaça em minha narina.
O vício é o vazio das coisas pintadas no claro-escuro da noite de minha janela.
Que sentido há na hera margeando calhas e cabos oxidados em busca do teto,
senão perder-se no abandono do casarão?
Qual o sentido da noite
outro que perseguir sonhos esquecidos no correr dos dias?

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Sobre o MST e laranjas

O texto MST e laranjas, de Mauricio Caleiro, publicado no dia 08/10 no blog Cinema & Outras Artes , que reproduzo abaixo, é um dos mais interessantes que já li sobre um movimento social tão odiado em todo o país. Se os Caiados e os Abreus do latifúndio nacional já o leram, devem detestar ainda mais o MST.
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O MST é detestado por todos: da direita ruralista à esquerda chavista, passando por tucanos, petistas, psolentos, verdes, azuis e amarelos. Mesmo os que fingem apoiar o MST o detestam.

Isso porque há uma antipatia ancestral e inata contra o MST, esse arquétipo de nosso inconsciente coletivo, esse cancro irremovível que insiste em nos lembrar, mesmo nos períodos de bonança, que fomos o último país do mundo a abolir a escravidão e continuamos sendo uma porcaria de nação que jamais fez a reforma agrária.

O MST é o espelho que reflete o que não queremos ver.

Há duas questões, na vida nacional, que contradizem qualquer discurso político da boca pra fora e revelam qual é, mesmo, de verdade, a tendência ideologica de cada um de nós, brasileiros: a violência urbana e o MST. Diante deles, aqueles que até ontem pareciam ser os mais democráticos e politicamente esclarecidos passam a defender que se toque fogo nas favelas, que se mate de vez esse bando de baderneiros do campo, PORRA, CARAJO, MIERDA, MALDITOS DIREITOS HUMANOS!

O MST nos faz atentar para o fato de que em cada um de nós há um Esteban de A Casa dos Espíritos; há o ditador, cuja existência atravessa os séculos, de que nos fala Gabriel García Márquez em O Outono do Patriarca; há os traços irremovíveis de nossa patriarcalidade latinoamericana, que indistingue sexo, raça, faixa etária ou classe social:

O MST é o negro amarrado no tronco, que chicoteamos com prazer e volúpia.

O MST é Canudos redivivo e atomizado em pleno século XXI.

O MST é a Geni da música do Chico Buarque - boa pra apanhar, feita pra cuspir – com a diferença de que, para frustração de nossa maledicência, jamais se deita com o comandante do zeppelin gigante.

E, acima de tudo, O MST é um assassino de laranjas!

E ainda que as laranjas fossem transgênicas, corporativas, grilheiras, estivessem podres, com fungos, corrimento, caspa e mau hálito, eles têm de pagar pela chacina cítrica! Chega de impunidade! Como o João Dória Jr., cansei!

Jornalismo pungente

Afinal, foi tudo registrado em imagens – e imagens, como sabemos, não mentem. Estas, por sua vez, foram exibidas numa reportagem pungente do Jornal Nacional - mais um grande momento da mídia brasileira -, merecedora, no mínimo, do prêmio Pulitzer. Categoria: manipulação jornalística. Fátima Bernardes fez aquela cara de dominatrix indignada; seu marido soergueu uma das sobrancelhas por sob a mecha branca e, além dos litros de secreção vaginal a inundar calcinhas em pleno sofá da sala, o gesto trouxe à tona a verdade inextricável: os “agentes“ do MST são um bando de bárbaros.

(Para quem não viu a reportagem, informo,a bem da verdade, que ela cumpriu à risca as regras do bom jornalismo: após uns dez minutos de imagens e depoimentos acusando o MST, Fátima leu, com cara de quem comeu jiló com banana verde, uma nota de 10 segundos do MST. Isso se chama, em globalês, ouvir o outro lado.)

Desde então, setores da própria esquerda cobram do MST sensatez, inteligência, que não dirija seu exército nuclear assassino contra os pobres pés de laranja indefesos justo agora, que os ruralistas tentam instalar, pela 3ª vez, como se as leis fossem uma questão de tanto bate até que fura, uma CPI contra o movimento (afinal, é preciso investigar porque o governo “dá” R$155 milhões a “entidades ligadas ao MST”, mesmo que ninguém nunca venha a público esclarecer como obteve tal informação, como chegou a esse número, que entidades são essas nem qual o grau de sua ligação com o MST: O Incra, por exemplo, está nessa lista como ligado ao MST?).

A insensatez dos miseráveis

Ora, o MST é um movimento social nascido da miséria, da necessidade e do desespero. Eles estão em plena luta contra uma estrutura agrária arcaica e concentradora. Não se pode esperar sensatez de movimentos sociais da base da pirâmide social, que lutam por um direito básico do ser humano. Pelo contrário: é justamente a insensatez, a ousadia, a coragem de desafiar convenções que faz do MST um dos únicos movimentos sociais de fato transgressores na história brasileira. Pois quem só protesta de acordo com os termos determinados pelo Poder não está protestando de fato, mas sendo manipulado. Se os perigosos agentes vermelhos do MST tivessem sensatez, vestiriam um terno e iriam para o Congresso fazer conchavos, não ficariam duelando com moinhos de vento, digo, pés de laranja.

Mas é justamente por isso que o MST incomoda a tantos: ele, ao contrário de nós, ousa desafiar as convenções: ele é o membro rebelde de nossa sociedade que transgride o tabu e destroi o totem. Portanto, para restituição da ordem capitalista/patriarcal e para aplacar nossa inveja reprimida, ele tem de ser punido. Ele é o outro.

Quantos de nós já se perguntaram como é viver sob lonas e gravetos – em condições piores do que nas piores favelas -, à beira das estradas, em lugares ermos e remotos, sujeito a ataques noturnos repentinos dos tanto que os detestam? Quantos já permaneceram num acampamento do MST por mais do que um dia, observando o que comem (e, sobretudo, o que deixam de comer), o que lhes falta, como são suas condições de vida?

Poucos, muito poucos, não é mesmo? Até porque nem a sobrancelha erótica do Bonner nem o olhar-chicote da Fátima jamais se interessaram pelo desespero das mães procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto o acampamento arde em fogo às 3 da madrugada, nem pelas crianças de 3,4 anos que amanhecem coberta de hematomas dos chutes desferidos pelos jagunços invasores, ao lado do corpo de seus pais, assassinados covardemente pelas costas e cujo sangue avermelha o rio.

Para estes, resta, desde sempre, a mesma cova ancestral, com palmos medidas, como a parte que lhes cabe neste latifúndio.

Para a mídia, pés de laranja valem mais do que a vida humana, quero dizer, a vida subumana de um miserável que cometeu a ousadia suprema de lutar para reverter sua situação.

Mas os bárbaros, claro está, são o MST.

Por isso, haja o que houver, o MST é o culpado.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Aeromoça

No avião, a tantos mil pés de altitude, descubro que existo porque vôo. Minha cabeça, ou melhor, o meu cérebro, é extensão do corpo do avião que plana sobre nuvens inconsistentes.

A força que me liga ao assento, sei, é a mesma que liga meu cérebro-corpo-avião à Terra: a gravidade. Daí veio a descoberta, conseqüência da primeira: sou dependente da mecânica do vôo.

E é assim que, contido nesse universo newtoniano, descubro a aeromoça, como num sonho metalingüístico.

Fantasma a assombrar os corredores? Átomos se recombinando? Ou anjo cujas asas lhe pregaram no peito?

Na paisagem interior do avião, a aeromoça é um mistério que conforta os medos, dissipa as inseguranças. É a realidade tangível do mito, superior a toda e qualquer mecânica. A aeromoça confunde-se com o avião, assim como este se confunde com as nuvens e os sonhos.

Afora os ansiosos que, por razões diversas de partidas e chegadas, e os morbidamente ligados à terra por alguma fobia ou trauma, muitos dormimos durante a viagem, crentes que um anjo nos vela.

Se é a aeromoça que fala nos interfones, mesmo que seja num francês sofrível, ou num inglês incompreensível, nos acalmamos, mas se é o comandante ou o co-piloto ficamos tensos à espera do pior; uma mensagem do tipo: Senhoras e senhores, lamentamos informar que um míssil vem em nossa direção. Por favor, apertem seus cintos de segurança e prestem atenção no aviso de não fumar. Em caso de aterrisagem forçada, nossas comissárias de bordo (outro nome que inventaram para as aeromoças) lhes mostrarão as saídas de emergência.

E aí temos a certeza - as aeromoças são anjos salvadores!

Talvez seja por isso que as cabines dos aviões, habitáculo dos comandantes, estejam sempre fechadas, herméticas a toda curiosidade dos passageiros. Elas, as cabines, fazem parte do estágio do sono em que não sonhamos, em que despertamos ao mais leve solavanco causado pela turbulência do vôo.

Ver o comandante desfilando pelos corredores do avião nos assusta, tal a visão de uma mula-sem-cabeça. A sua presença nos remete à idéia de dependência à maquina, aos temores do desafio do risco calculado, à projeção da fragilidade de nossas inteligências diante de forças além de nossas vontades.

E também, talvez, seja por isso que só nos lembramos do comandante quando chegamos sãos e salvos ao nosso destino, e até chegamos a aplaudi-lo.

Mas a aeromoça, ah, a aeromoça é aventura, sobrevôo de paises e cidades distantes que nunca conheceremos...