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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Felipe


Foi num desses domingos em que o inverno faz uma pausa de nuvens opacas e sobem aos céus andorinhas em vôos espiralados. Uma tarde morosa de inverno. O céu se abriu e Felipe se foi, encoberto em nuvens translúcidas, adejando sobre a baía.

Na segunda, foram-se médicos cubanos em um vôo anônimo, no desvão da intolerância, enquanto flores e dizeres post-morten em um cemitério de Macapá ficaram lembrando a curta existência de um menino.

Com palavras tento estabelecer relações entre duas partidas aparentemente tão distintas e, no entanto, faces de uma mesma moeda, ou de um dado jogado não por acaso.

Recuo no tempo e o carro branco que dirijo avança trôpego sobre a linha da beira-rio; tudo me parece frágil ante a força da baía, em que sinto gritar a dor de Nete que chora, e o carro seguindo o fim de tarde, a tênue linha do horizonte a desfazer-se para deixar passar a noite. Temo as palavras, elas escapam-me entre as mãos e estou preso ao volante de um carro sem rumo.

A baía revolta bate contra o quebra-mar à beira da noite, ondas-dedos de água esfacelam-se em apelos inúteis, ou são meus olhos marejados de lágrimas e indignação. Na profusão da dor, o corpo convulso de Nete se debate contra meu peito como ondas encrespadas, o estertor da morte nos envolve num sofrimento indizível - ilhas flutuantes sacolejados numa baía de lembranças desesperadas de um menino pés descalços e tez negra que a indolência de um médico naufragou.

A indignação ganha nome como um barco chegando a um cais abandonado: Absurdo! Abs...urdo! Ab... surdo...

Quando me dou conta já não mais sigo a linha do rio. De pé, diante da baía, vejo um carro negro a despejar um ataúde, dores esvaindo-se em prantos. E penso na vida como um sonho que vivemos num lapso de tempo da criação. A morte, uma ausência que guardamos sob o tapete colocado na soleira de nossas casas. De repente, descubro que as palavras levam-me a um destino desconhecido, ao abandono dos sentidos, que a morte é dúvida na qual sempre findamos.

Mas por quê aos 11 anos de Felipe? se Felipe corria com a vida, leve como o vento. Por quê, numa noite que perdeu-se no registro de um hospital, um médico não deu um pouco do seu tempo para tocar o coração de Felipe? Um médico que não o ouviu respirar, deixando-o suspenso numa noite de inverno.

Uma medicina que não sente o pulso e o ritmo de vida de um menino, que agora jaz ali cercado de dor, dor e dor por todos os lados, serve a que e a quem?

Há algo de errado com os homens em branco despejados das faculdades...